“Mais um dia,
e tudo parece se repetir para mim. Ainda ontem acordei com a mesma sensação. Já
faz algum tempo que eu não vejo minha mãe, meu pai, meus irmãos... Onde será
que eles se meteram? Cá estou eu de novo, esperando meus amigos. A gente
combinou de se encontrar para ir à passeata que ocorrerá no centro, em prol das
Diretas Já. Eu particularmente acredito que, de agora em diante, as coisas vão
começar a andar nesse país...
...Lá vêm
eles
...Engraçado,
tudo parece se repetir... Até posso predizer o que acontecerá no próximo
minuto: os caras vão chegar naquele entusiasmo, afinal quem está à frente da
nossa turma é o Claudião; esse cara é uma figura... quando bota alguma coisa na
cabeça, ninguém tira. Lá na escola ele convocou toda a galera para a tal
passeata.
‘Meu, agora é com a gente! Não podemos dar
mole, senão perderemos essa chance que é única, de mudar definitivamente os
rumos desse país! Abaixo a ditadura! Viva o Brasil!’
- O Claudião é
gente fina...
Agora já
estamos indo para o centro de São Paulo a fim de participar do movimento pelas
Diretas. O ônibus está lotado, o dia está chuvoso, mas nada apaga nossa vontade
de participar de um movimento que poderá mudar os rumos do nosso país... E eu
já sei o que vai acontecer logo adiante, naquela curva... O ônibus vai
derrapar, e, após isso, já não sei mais nada... Vou acordar no outro dia;
notarei pelas ausências dos meus familiares; minha turma vai aparecer e
novamente iremos à passeata em prol das eleições diretas; nosso ônibus vai
derrapar na curva e, a partir dali eu não sei mais o que acontecerá...
Será que eu morri?
A morte seria
uma espécie de prisão num determinado intervalo de tempo ocorrido durante a
vida?
E se for isso, quem teria o poder de fazer o
tempo andar?
Ou estaria eu apenas sonhando um sonho
enfadonhamente cíclico? Definitivamente não sei o que está acontecendo
comigo... O engraçado é que eu tenho consciência de que algo muito estranho
está acontecendo, mas não tenho como interferir...
Mais uma vez
avisto a turma vindo na direção da minha casa... À frente se destaca o
Claudião... Ele profere o mesmo discurso de ontem... anteontem... Eu já decorei
a fala dele e de todos os outros meus amigos...
O ônibus...
A curva...
A
derrapada e, o que está acontecendo?
Que luz forte
é essa?
Meus olhos... Essa luz é muito forte... Meus
olhos, não consigo enxergar direito...”
- Meu filho!
Graças a Deus! Você está de volta! Obrigado meu Deus!
- Mãe... Que
luz é esta... Apaga esta luz, por favor!
- Oh meu
filho, é claro, apago sim... Você ficou muito tempo com os olhos fechados, vai
ter que se readaptar... Mas o mais importante é que você está de volta!
Obrigado meu Deus!
E assim, após
passados vinte e oito anos, Januário, filho de dona Ambrosina, sai do coma. Ele
havia sofrido um terrível acidente no dia em que estava indo para uma grande
manifestação popular a favor das eleições diretas no país. Numa curva na Avenida
23 de Maio, o ônibus em que se encontrava capotou duas vezes e, em seguida
pegou fogo. Todos os ocupantes morreram, exceto ele, o Januário. Mas a partir
daquele dia ele mergulhou num estado de coma e, somente agora, depois de quase
três décadas, ele volta à vida normal.
Sua
recuperação após sair do coma foi surpreendente. Em poucos dias já falava, se
alimentava normalmente e, passados alguns meses, já estava andando. Mas uma
coisa não mudou: ele havia envelhecido vinte e oito anos sem se dar conta. Sua
mente estava presa ao passado. Para ele era difícil até se acostumar com o
próprio rosto, castigado pela passagem do tempo e pelas marcas do acidente do
passado. Januário precisava tomar um rumo na vida. E tomou. Numa noite, após o
jantar, dirigiu-se ao irmão mais velho e fez uma solicitação para ele:
- Joaquim, me
ensina a mexer neste tal de Google?
E foi assim
que Januário começou a sair da terrível prisão do intervalo de tempo que o estado
de coma lhe impusera.
ISAÍAS
GRESMÉS, 1/05/2012
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