terça-feira, 1 de maio de 2012

O DESPERTAR DO COMA



“Mais um dia, e tudo parece se repetir para mim. Ainda ontem acordei com a mesma sensação. Já faz algum tempo que eu não vejo minha mãe, meu pai, meus irmãos... Onde será que eles se meteram? Cá estou eu de novo, esperando meus amigos. A gente combinou de se encontrar para ir à passeata que ocorrerá no centro, em prol das Diretas Já. Eu particularmente acredito que, de agora em diante, as coisas vão começar a andar nesse país...
...Lá vêm eles
...Engraçado, tudo parece se repetir... Até posso predizer o que acontecerá no próximo minuto: os caras vão chegar naquele entusiasmo, afinal quem está à frente da nossa turma é o Claudião; esse cara é uma figura... quando bota alguma coisa na cabeça, ninguém tira. Lá na escola ele convocou toda a galera para a tal passeata.
 ‘Meu, agora é com a gente! Não podemos dar mole, senão perderemos essa chance que é única, de mudar definitivamente os rumos desse país! Abaixo a ditadura! Viva o Brasil!’ 
- O Claudião é gente fina...

Agora já estamos indo para o centro de São Paulo a fim de participar do movimento pelas Diretas. O ônibus está lotado, o dia está chuvoso, mas nada apaga nossa vontade de participar de um movimento que poderá mudar os rumos do nosso país... E eu já sei o que vai acontecer logo adiante, naquela curva... O ônibus vai derrapar, e, após isso, já não sei mais nada... Vou acordar no outro dia; notarei pelas ausências dos meus familiares; minha turma vai aparecer e novamente iremos à passeata em prol das eleições diretas; nosso ônibus vai derrapar na curva e, a partir dali eu não sei mais o que acontecerá...
 Será que eu morri?
A morte seria uma espécie de prisão num determinado intervalo de tempo ocorrido durante a vida?
 E se for isso, quem teria o poder de fazer o tempo andar?
 Ou estaria eu apenas sonhando um sonho enfadonhamente cíclico? Definitivamente não sei o que está acontecendo comigo... O engraçado é que eu tenho consciência de que algo muito estranho está acontecendo, mas não tenho como interferir...

Mais uma vez avisto a turma vindo na direção da minha casa... À frente se destaca o Claudião... Ele profere o mesmo discurso de ontem... anteontem... Eu já decorei a fala dele e de todos os outros meus amigos...
O ônibus...
 A curva...
 A  derrapada e, o que está acontecendo?
Que luz forte é essa?
 Meus olhos... Essa luz é muito forte... Meus olhos, não consigo enxergar direito...”

- Meu filho! Graças a Deus! Você está de volta! Obrigado meu Deus!
- Mãe... Que luz é esta... Apaga esta luz, por favor!
- Oh meu filho, é claro, apago sim... Você ficou muito tempo com os olhos fechados, vai ter que se readaptar... Mas o mais importante é que você está de volta! Obrigado meu Deus!

E assim, após passados vinte e oito anos, Januário, filho de dona Ambrosina, sai do coma. Ele havia sofrido um terrível acidente no dia em que estava indo para uma grande manifestação popular a favor das eleições diretas no país. Numa curva na Avenida 23 de Maio, o ônibus em que se encontrava capotou duas vezes e, em seguida pegou fogo. Todos os ocupantes morreram, exceto ele, o Januário. Mas a partir daquele dia ele mergulhou num estado de coma e, somente agora, depois de quase três décadas, ele volta à vida normal.
Sua recuperação após sair do coma foi surpreendente. Em poucos dias já falava, se alimentava normalmente e, passados alguns meses, já estava andando. Mas uma coisa não mudou: ele havia envelhecido vinte e oito anos sem se dar conta. Sua mente estava presa ao passado. Para ele era difícil até se acostumar com o próprio rosto, castigado pela passagem do tempo e pelas marcas do acidente do passado. Januário precisava tomar um rumo na vida. E tomou. Numa noite, após o jantar, dirigiu-se ao irmão mais velho e fez uma solicitação para ele:
- Joaquim, me ensina a mexer neste tal de Google?

E foi assim que Januário começou a sair da terrível prisão do intervalo de tempo que o estado de coma lhe impusera.

ISAÍAS GRESMÉS, 1/05/2012

  


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