sábado, 31 de março de 2012

O ZEQUINHA E O JOSÉ CARLOS






Todo mundo conhecia o José Carlos Almeida, popularmente chamado de Zequinha. Ele era figura mais que presente no bairro. No seu rosto o sorriso estava sempre presente e suas mãos quase sempre estavam ocupadas com componentes eletrônicos velhos que ele achava nos terrenos baldios da vizinhança. “Se a gente não reparar nem dá para perceber que o Zequinha tem algum problema”, era o que todos falavam.
Zequinha nasceu com retardo mental. E mesmo com vinte e cinco anos, comportava-se como se tivesse uns sete. Seu passatempo preferido era juntar restos de eletrônicos velhos. Dizia que iria construir uma nave para viajar até o céu. “Eu quero conhecer o papai do céu”, costuma explicar bem sério a quem o perguntasse sobre o que estava fazendo com tudo aquilo.
A mãe de Zequinha, dona Maria, era uma batalhadora. Casou-se cedo com aquele que foi o seu único homem. “Foi amor à primeira vista, coisa de contos de fadas, mas eu não podia esperar que o meu príncipe se transformasse na bruxa do meu conto de fadas particular”, lamentava-se tristemente quando perguntada sobre seu companheiro.
 Seu casamento ruiu logo no começo, depois que seu marido caiu na desgraça de usar o crack. A pobre mulher, mesmo grávida de alguns meses, era espancada pelo infeliz companheiro todos os dias. O amor que sentia por ele foi se transformando em ódio. Mas não era por ele que ela sentia repulsa, era por aquela droga maldita.
Um dia o homem chegou completamente louco, gritando que queria dinheiro. Ela disse a ele que não havia mais nada na casa, pois ele mesmo havia vendido tudo. O pobre infeliz, na agonia da falta da droga, correu na direção da janela e voou para a morte.

Alguns meses depois veio ao mundo aquele que ficou conhecido mais tarde como Zequinha. Dona Maria enfrentou muitas dificuldades para criá-lo, pois seu filho nascera com sérias limitações intelectuais, mas nunca mais se envolveu com nenhum homem. “Minha vida agora é para criar o meu filho, pois ele é a razão do meu viver”, emocionava-se sempre quando indagada sobre o porquê de não ter se casado novamente.

Zequinha realmente era uma criatura amável, apesar das suas limitações, ajudava a mãe nos afazeres domésticos, frequentava a escola especial que a mãe tanto se esforçara para conseguir uma vaga e adorava ir às missas dominicais para cantar os louvores. Mas sua paixão era o seu “projeto”: passava o tempo todo revirando os lixos à procura de componentes eletrônicos para “construir” sua “nave espacial”. No começo dona Maria ralhou com ele, mas depois parou, pois entendeu que aquilo era um passatempo dele e era uma atividade que o fazia muito feliz.

Certo dia dona Maria foi até o fundo do quintal onde brincava Zequinha. Ela logo o avistou. “Obrigado meu Deus, por ter me enviado um anjo... Não sei o que seria de mim sem ele... Obrigado pai amado!”, agradeceu em pensamento a religiosa senhora. Em seguida, sem que ele notasse, voltou à sala da casa, pegou a sacola cheia com roupas que havia consertado e foi entregá-las às clientes ali perto.
Zequinha, completamente envolvido com a sua atividade, não percebeu nem a mãe, tampouco aquelas criaturas que apareceram do nada e o cercou. Eram três. Nenhum ruído, nenhuma marca. Zequinha se foi com eles. Dona Maria, no exato momento do acorrido com Zequinha, desmaiou por alguns segundos. Tempo suficiente para sonhar com um futuro melhor para o seu filho.

PARTE II

“O que aconteceu dona Maria! – a senhora está bem”. “Sim, estou, não foi nada. Agora preciso ir”.

Os vizinhos se mobilizaram, produziram cartazes que informavam sobre o desaparecimento do Zequinha. O líder comunitário levou dona Maria até o Distrito Policial da região. Mas dona Maria estava tranquila, e sempre afirmava que seu filho fora levado por anjos de Deus e que Zequinha iria voltar completamente curado da sua enfermidade de nascença. Quando falava, exibia um semblante de fé e alegria. Todos concluíram que Dona Maria estava enlouquecendo.

Cinco anos se passaram. Dona Maria continuou levando a vida como se nada estivesse acontecido. Quando lhe perguntavam sobre Zequinha, ela apenas dizia: “Deus vai me mandar ele de volta e curado do seu problema mental”. “Pobre criatura! Está louca!”, concluíam todos.

Certa tarde, como sempre fazia antes de sair para entregar as encomendas de roupas, dona Maria foi até o fundo da casa. Foi quando do nada aparece Zequinha. Ele estava mudado. Seu rosto estava com a barba feita, seu cabelo impecavelmente penteado e o corpo bem vestido com belo traje. Ele abriu os braços e sorriu. “Vem cá mãe, obrigado por ter me esperado”. “Oh Zequinha, você nem imagina como eu estou feliz”. “Minha mãe, o Zequinha foi aquele que foi curado por Deus, de agora em diante a senhora e todos me chamarão pelo meu nome de registro, ou seja, José Carlos”. “Que assim seja meu filho.”

Todos os dias pessoas com problemas mentais desaparecem do nada e nunca mais voltam. Mas elas nunca desaparecerão dos corações daqueles que as amam.

ISAÍAS GRESMÉS, 31/03/2012
 





ABDUZIDO




   Durante o interrogatório em uma pequena sala, João tenta explicar o que ninguém ali conseguia entender: como ele reaparece do nada, após vinte anos e, sem praticamente nenhum sinal de envelhecimento? Ele, na sua intimidade, também estava se esforçando para entender aquela situação assustadora . O que afinal havia acontecido consigo próprio? Por que a sua mãe, o seu pai, seus irmãos e os amigos estavam todos com uma aparência de mais velhos e ele não? Isso sem contar que, ao olhar para o local onde vivera toda a  vida, notara que estava completamente mudado em relação à imagem que tinha gravada na mente.
    João, confuso, relata o que se passara com ele algum tempo atrás. Seu caso despertou a atenção de autoridades científicas do mundo inteiro. Na pequena sala, aquele cientista estava ansioso por ouvi-lo:
   - Foi assim: naquele dia acordei às 6h, como me era de costume... Fiz um café, tomei uma pequena xícara e logo em seguida saí para minha corrida matinal. Naquele dia, não sei porquê, resolvi fazer um caminho no qual eu ainda não havia percorrido. Era uma trilha no meio de uma pequena mata perto da minha casa... Eu sempre gostei de entrar em contato com a natureza e, embora aquele caminho fosse desconhecido para mim, resolvi percorrê-lo... Quando eram passados mais de 15 minutos,  e eu sei que era esse o tempo porque olhei no meu cronômetro, avistei um obstáculo no meu caminho: tratava-se de uma enorme árvore caída... Acho que foi devido à tempestade da noite anterior. Fui obrigado a me embrenhar no mato para me desviar dela. Foi neste momento que eu caí num poço bem fundo e...
    - Espera aí meu jovem - levanta a voz, Afrânio, o cientista, um físico conhecido do país – Como isso é possível, se você não apresenta nenhuma cicatriz, sem contar que já se passaram vinte anos?!
   - Eu não sei dizer, mas foi isso que aconteceu... Quando cheguei lá embaixo comecei a sentir dores horríveis como eu nunca havia sentido... Minhas pernas estavam quebradas e...
    - Sei, disse Afrânio, interrompendo-o mais uma vez, com ar de desdenho.
    - Continuando: minhas pernas estavam quebradas e os ossos estavam expostos...  Mas eu não as sentia... Havia perdido a sensibilidade da barriga para baixo... Meus braços também estavam quebrados... Um deles, o esquerdo, estava pendurado por um pedaço de músculo... Eram deles que eu sentia uma dor que não quero nunca mais sentir.
   - Seu João, francamente, o senhor acha que alguém vai acreditar nesta sua explicação?
   - Olha aqui meu senhor, grita João já visivelmente irritado, se não quiser escutar o que eu tenho a dizer, é só ir embora!  - Eu estou relatando o que aconteceu comigo, sem tirar nem por, agora acreditar ou não, depende você! – Por isso peço-lhe por gentileza, que não me interrompa mais, pode ser?
   O cientista, constrangido, acena positivamente com a cabeça.
   E João prosseguiu relatando o acontecido até chegar num ponto perturbador.
   ... – Fiquei naquela agonia por mais ou menos umas duas horas... Já estava com dificuldades até para respirar... Minha visão foi ficando cada vez mais turva... Minha boca seca... Notei que algumas sanguessugas estavam se concentrando na região das fraturas expostas das minhas pernas... Eu tentei retirá-las, mas a cada esforço da minha parte, sentia que poderia morrer... Foi neste momento que algo muito estranho aconteceu – João respirou fundo, olhou para o físico e continuou sua narrativa:
    - ... Uma luz intensa, tão forte quanto a luz do sol, preenche todo o fundo do poço... Eu fiquei feliz e pensei “estou salvo”... De repente uma força estranha começa a manipular meu corpo e, depois disso, apaguei.
   O silêncio na sala era sepulcral.
   - Posso fazer-lhe algumas perguntas agora?
   - Sim.
   - E depois, aonde você foi?
   - Não sei seu Afrânio, primeiramente me vi cercado de pessoas cujos rostos eu não podia ver. Eles estavam mexendo no meu corpo. Era uma equipe enorme. Deduzi que eram médicos. Só que fiquei muito confuso, pois eles usavam equipamentos estranhos que emitiam luzes e nada falavam, porém eu percebi que havia um completo entendimento entre todos e a comunicação se dava apenas com o olhar.
   - Como assim?
   - É só isso que eu tenho a dizer. Não sei quem eram aquelas pessoas, só sei que eles consertaram meu corpo e me devolveram à vida.
   - Você mencionou que foi “manipulado por luzes”. Poderia explicar isso?
   - Foi exatamente assim: primeiramente eu me vi ofuscado por aquela luz intensa e, a seguir, senti aquela luz manipular meu corpo, como a me atrair para ela. Foi neste momento que eu desmaiei.
   - E após a “cirurgia”, o que aconteceu depois?
   - Algum tempo depois eu já estava convivendo com várias pessoas, só não conseguia distinguir seus rostos, porém dentro de mim era como se eu tivesse vivido ao lado delas sempre. Passeávamos por imensos parques, cultivávamos extensas áreas com variados cereais, estudávamos, praticávamos esportes e ensinávamos também; enfim, a minha vida prosseguiu de uma forma bem dinâmica como nunca antes havia sido.
   - E você não achou estranho tudo isso?
   - Para ser sincero não senhor! – É estranho, mas eu nem me lembrava dos meus pais... Era como se aquelas pessoas as quais eu não conseguia reconhecer o rosto fossem também parte de mim, como a minha mãe, meu pai e meus amigos, entende?
   - Está difícil para mim acreditar nisso... E como o senhor explica essa sua ausência durante vinte anos em que o senhor praticamente não sofreu com a passagem do tempo?
   - Eu não sei... Só me lembro do dia em que me despedi de todos os meus amigos sem rostos. Eles nada disseram, como, aliás, era de costume, mas eu entendi que já era hora de eu partir. Naquele dia um deles me fez uma revelação...
   - E qual revelação é essa?
   - Ele me disse, e disse-me do jeito peculiar deles, que eu mostraria aos humanos, quando chegasse a hora, que a Terra era apenas um dos lares da humanidade, que outros haviam e o caminho estava em mim. Em seguida entrei num portal de luz e acordei na minha cama, a qual minha mãe deixara arrumada no decorrer desses longos vinte anos.
   - Fale-me sobre esse “portal de luz”.
   - Tinha um formato oval; sua luz não era tão intensa. Quando eu dei um passo para dentro dele, já acordei lá na minha cama.
   O cientista sorriu satisfatoriamente e concluiu:
   - João, você é a prova viva de que existem buracos de minhoca e que é possível as viagens interplanetárias. Meu amigo, temos um longo trabalho pela frente!
   - Então o senhor acredita em mim?
   - Claro!

   Após aquele exaustivo dia, João finalmente se deita na aconchegante cama que sua mãe nunca deixara de arrumar sonhando com a sua volta. No meio da noite, já no estado de sono profundo, da testa dele sai um feixe de luz que vara a escuridão das ruas e chega à residência de Afrânio. O cientista, como que laçado pela luz, vai ao encontro de João. E ambos saem para uma longa viagem rumo a outra moradia da humanidade.

                     ISAÍAS GRESMÉS, 16/03/2012

sexta-feira, 9 de março de 2012

A FATIA DE BOLO





  Estava eu passando por aquela viela, como sempre fazia todos os dias, quando avisto, a mais ou menos uns dez metros, aquele meu conhecido, o Leandro. Ainda de longe pude ver que ele trazia nas mãos uma fatia de bolo. Naquele momento tive a nítida sensação de que já havia vivido aquele episódio em algum intervalo de tempo do passado.
Ao se aproximar de mim, Leandro sorrindo, estende as suas mãos e me oferece uma fatia de bolo. Eu, com minha barriga de menino abandonado, agradeci apenas com um olhar assustado e surpreso. Sem titubear devorei-a e nem percebi quando o bondoso amigo se foi.

   O celular me desperta, como eu o havia programado, às 6h. Levantei da cama com aquele sonho impressionante em minha mente. “Mas como podia ser?”, pensei. Se na primeira ocasião em que ocorrera aquele encontro inusitado entre mim e Leandro, naquela viela, ele me havia negado um pedaço do seu bolo?
    Lembro como se fosse hoje: estava andando sem rumo por aquele local, quando vi, ao longe, Leandro vindo em minha direção. À medida que se aproximava de mim, pude ver que ele trazia entre as mãos uma apetitosa fatia de bolo. Não pensei duas vezes e, ao ficar frente a frente com ele, pedi-lhe um pedaço.
   “Sai fora passa fome, não vou dar não!”.
   Meus olhos se encheram d’água, porque, embora fosse verdade o fato de eu ser aquilo que ele me disse, essa expressão me doía na alma. Continuei no meu caminho, agora triste e com a barriga roncando de fome. E por que agora, decorridos mais de vinte anos, sonho com aquele episódio verídico, mas desta vez com final feliz?

   Minhas indagações foram interrompidas pelo som estridente da campainha. Vesti uma bermuda rapidamente e fui abrir a porta. Minha surpresa foi tão grande que não pude me conter e comecei a chorar. Na minha frente estava dona Maria, mãe de Leandro, com uma fatia de bolo, tão suculenta quanto aquela do meu sonho. Ela, muito emocionada, diz-me a que veio.
   - Bom dia João, permita-me entrar? – Estou aqui, respira fundo e continua – em nome do... do meu filho Leandro.
   - Mas como assim dona Maria? – Como isso é possível?
   - Não sei meu filho! – Mas ontem tive um sonho no qual meu inesquecível filho Leandro me aparece e me faz uma solicitação bem clara: “... Mãe, pelo amor de Deus, conserta um grave erro que eu cometi no passado...” - E após longa explicação, pude concluir que tinha mesmo que lhe trazer esta fatia de bolo... Toma querido, aceite, este é um pagamento de uma dívida, paga agora por mim, do meu filho!
Abracei a bondosa senhora. Peguei aquela fatia de bolo e comecei a comê-la. Dona Maria me observava em lágrimas. Mas não eram lágrimas de dor, eram de alegria.
   - É dona Maria – falei dirigindo-me a ela – agora entendo o sonho que tive com o seu filho... Onde quer que ele esteja, sinto que neste momento está bem melhor... E eu também, e eu também...
   - Todos nós, meu filho! Todos nós - repetiu dona Maria.

ISAÍAS GRESMÉS, 4/03/2012