sábado, 13 de fevereiro de 2010

Um outro olhar*

UM OUTRO OLHAR*


-Oi vô, tudo bem?
-Oi meu querido, que bom que você veio me visitar!
-Ah vô, eu não via a hora de chegar as minhas férias escolares para vir aqui e escutar aquelas estoriazinhas que só o senhor sabe! Ainda me lembro de todas elas... Sabe vô, algumas vezes eu até sonhava com elas!
-Bondade sua meu querido... Bom, então vem aqui e me dê um abraço, um beijo e um aperto de mão, pois, como você já sabe, este é meu pagamento antecipado.
-Oh vô! – me desculpe (neste momento o neto abraça o avô calorosamente, em seguida beija-lhe a face enrugada e finaliza com um afável aperto de mão)!
-Muito bem, já fui devidamente pago (fala o avô sorrindo), agora vou narrar a estória de um homem de valor que jamais se deixou abalar pelo peso da vida (deu um longo suspiro, mirou o horizonte com um olhar perdido e começou a narrar).
-Certo dia, como lhe era habitual no dia do recebimento da aposentaria, João, esse era o nome desse homem valoroso, pedira à irmã mais velha, cujo nome era Maria, para acompanhá-lo até a agência bancária, que ficava bem distante da periferia onde eles moravam (respirou um pouco e continuou). No meio do caminho, Maria começou a se aborrecer com o que via:
-Ah João, que coisa triste! Várias crianças mendigando na rua!
João ao escutar o lamento de Maria, procurou confortá-la, mas não conseguiu, pois o que ela presenciou a seguir, a deixou furiosa.
-O que aconteceu vô?
-Uma coisa lamentável: do outro lado da rua havia um homem mal encarado recolhendo os trocados que os meninos recebiam como esmolas dos transeuntes!
-E o que ela fez? – E o João, o que fez?
-Calma ai que já conto (fez uma pausa, olhou nos olhos atentos do neto e continuou). – Maria começou a xingar aquele homem, mas com a voz bem baixa, de forma que somente João pode escutar.
- Maria, não se preocupe com isso minha irmã! Lembre-se do ensinamento do nosso Senhor: “benditos são os que têm sede de justiça...” (apertou a mão da irmã e prosseguiu) - Minha querida irmã, eu tenho certeza que essa esmola que você viu este homem tomando das crianças, será o preço que a vida vai cobrar dele. Quanto às crianças, bem, acreditemos na justiça divina!
-Ah, eu sei meu irmão, mas é que eu não consigo ver estas coisas e me conformar, entende?
-Entendo! Entendo sim minha irmã! Mas vamos! - vamos seguir nosso caminho, tudo bem?
-Nossa vô, esse João me parece ser um cara sereno, enquanto que a Maria parece ser um tanto quanto temperamental, não é verdade?
-Sim, você observou bem, é isso mesmo (o avô gostava quanto o neto interagia com ele: era sinal que já estava enxergando a estória), pois, mais à frente, outro fato fez Maria perder as estribeiras, havia vários rapazes, alguns até mais novo que você, fumando maconha!
-Tá vendo? Eu não aguento isso meu irmão, esses moleques não sabem nada da vida ainda, no entanto, já estão se envenenando com essa droga maldita!
-É irmã, eu estou sentindo o cheiro desta erva maldiçoada. Concordo com você querida, eles não sabem nada da vida, muitos até perderão a vida antes de saber alguma coisa, mas Deus é misericordioso e mostrará àqueles que optarem pelo caminho reto, que sim, é possível viver na dura vida das periferias, sem a ilusão das drogas.
-É irmão, você sempre tem uma palavra de conforto para mim, obrigado! – Vamos, pois já estamos bem próximos da agência bancaria.

-Vô, uma coisa está me intrigando nesta estória, o João não podia andar sozinho devido a alguma deficiência nas pernas, por isso que ele era sempre acompanhado pela irmã?
- Não meu querido (respondeu o avô, sorrindo), João andava para todos os lados, embora com um pouco de dificuldades, mas andava. O problema dele era a cegueira, sim, ele nasceu cego!
-Cego vô?
-Sim, nunca viu nem o próprio rosto! No entanto enxergava como ninguém a alma humana.
-É vô, deu para perceber isso mesmo, ele procurava “ver” a vida sempre pelo lado positivo, já a irmã...
-É meu neto, a Maria falava que se sentia cega quando o irmão estava do lado dela, porque ele “enxergava” nas situações cotidianas, alguns detalhes que ela não conseguia visualizar. – Bem, meu querido neto, por hoje é isso, essa estória acaba por aqui, mas de onde ela veio, tem mais viu!
-Obrigado vô! Outro dia volto aqui para escutar outra hein!

FIM – Isaías Gresmés 13/02/2010 – *Conto inspirado no soneto “NADA VEJO”, de Josafá Maia


Nada vejo

A minha volta nada vejo de tristeza,
Não vejo a boca a mendigar migalhas,
Não vejo a podridão do vil canalha,
Não vejo d’alma negra a impureza.

Não vejo a maldade que se espalha,
Não vejo as crianças indefesas,
Não vejo do bandido a pobre presa,
Não vejo o pobre a carregar cangalha.

Não vejo a densa nuvem de fumaça
Que sobe da maconha em plena praça.
Não vejo nada, mas tampouco nego.

Pois Deus, em sua bondade infinita
Livrou-me dessa infame vista aflita,
Não vejo esse mundo. Eu nasci cego!


Josafá Maia da Costa

7 comentários:

  1. Pior cego é aquele que não pode ver e, abençoados os que enxergam além de ver.

    Virei em um momento mais oportuno fazer o comentário que merece.

    bjs

    Divino, como sempre

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. Oi Isaías...

    Eu já havia lido e, me emocionado, com esse poema do Josafá!

    E o seu conto, não foi diferente, também me emocionou ouvir a história que o avô (cego) conta (de si próprio) para o netinho...

    Daí, tira-se uma grande verdade:
    Nem todos os olhos que veem, enxergam; e, nem todos os olhos cegos estão em total escuridão!

    Gostei demais, meu garoto!
    Muito embora o meu comentário possa ser simplório, ok?

    Um beijo em você.

    ResponderExcluir
  4. Agradeço de coração Kelly, pelo seu comentário. Muito obrigado. Suas observações só me fortalecem.

    ResponderExcluir
  5. Sôni@, adorei o seu comentário. Você fez uma observação (do avô ser cego) que eu não havia imaginado. mas é perfeitamente possível e a leitura pode sim levar a esta conclusão. Fiquei emocionado ao "enxergar" a cena do avô cego narrando a estória de um outro cego. Obrigado pelo carinho e pela gentileza no seu comentário.

    ResponderExcluir
  6. A visão deste conto percebe o que os olhos físicos não concebe...

    Menino , não havia lido este conto!
    Beleza de postado!

    ResponderExcluir
  7. COMENTÁRIO SOBRE O TEXTO “UM OUTRO OLHAR”, DE ISAIAS GRESMÉS

    O texto baseado no poema de Josafá Maia da Costa foi muito bem escrito. Conseguiu fazer com que o leitor visualizasse as cenas descritas.
    Usando nomes e temas cotidianos o autor transportou ao texto suas próprias indignações ante a realidade tão cruel e triste que vivemos no tempo contemporâneo. A exploração de menores e o uso de drogas. Temas que poderiam ser amplamente explorados além de expandidos, caso fosse esse o interesse do autor.
    As figuras antagônicas usadas ajudam a dar movimento ao texto e, aliada a elas, está a própria movimentação dos personagens ao se dirigirem, a pé, ao seu destino – o banco-
    Enquanto percorrem as ruas, desfrutando da companhia fraterna um do outro, vão tecendo observações e comentários a respeito do que ocorre ao seu redor. Maria faz de forma revoltada e indignada, ao passo que João é mais tranqüilo e ajuda a irmã a se acalmar e a se conformar com as injustiças do mundo.
    As duas cenas descritas pelos personagens, a exploração de menores e o uso de drogas, carregam em si tantas entrelinhas que seria possível criar tantos outros contos baseados nesse.
    A exploração de um adulto ao tirar dinheiro das crianças que mendigavam leva o leitor a questionar a realidade dessas crianças. Teriam pais? Se os têm, onde estão? Qual o tipo de gente? Até que ponto essas crianças são exploradas? Onde está o DIREITO vigente no ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE? Tem um ditado que diz: “Falar, até papagaio fala!”. Elas precisam de ajuda agora para não tornarem-se os jovens drogados da situação seguinte vista pelos personagens ou tornarem-se coisa pior...
    Quanto à cena dos jovens drogados, o questionamento também é extenso. O que levou esses jovens ao uso de drogas? Sabe-se que não só jovens de baixa renda drogam-se, sendo assim, pergunta-se: como é a família deles? No caso de ser estruturada, qual parte deu errado? Qual foi o gatilho que os levou a se desviarem do caminho do bem? Assim como na situação anterior, a gama de especulação é tamanha que geraria, aqui também, outros contos
    Essas figuras dão o pano de fundo em que decorre a história. O avô e o neto (idoso e jovem); a irmã e o irmão (mulher/homem), a serenidade do personagem João em contrapartida à revolta de Maria, a religiosidade de João e a mudez de Maria a esse respeito.
    Outro ponto que chama a atenção é a rara disposição de um jovem e ainda criança, escutar as histórias /ensinamentos de uma pessoa idosa.
    O menino realmente gosta de estar com o avô, de ouvir suas historias, fica ansioso com o dia de vista e o faz com grande carinho
    O desfecho da história é excelente. A cegueira física de João não o impediu de ver o mundo pelos olhos da alma. Não é uma pessoa revoltada com sua deficiência, crê em Deus e crê em Seu julgamento.
    As lições de moral, religião e respeito demonstradas nesse conto deveriam servir de “puxão de orelhas” a todos nós que deixamos cenas como essas fazerem parte da realidade como algo normal e banal. Algo ser comum não quer dizer que seja normal e certo. NÃO É CERTO NEM NORMAL A EXPLORAÇÃO FISICA E MORAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES. NÃO É CERTO NEM NORMAL O USO E TRÁFICO DE DROGAS EM PORTAS DE ESCOLAS.
    Devemos desesperadamente gritar contra as injustiças, o mal não deve vencer em hipótese alguma

    Obrigada Isaias por mais um excelente trabalho que tive a oportunidade de ler


    kelly

    ResponderExcluir

Eu, desde já agradeço a você, nobre amigo(a), pela presença aqui. Fique à vontade quanto ao seu comentário.