UM OUTRO OLHAR*
-Oi vô, tudo bem?
-Oi meu querido, que bom que você veio me visitar!
-Ah vô, eu não via a hora de chegar as minhas férias escolares para vir aqui e escutar aquelas estoriazinhas que só o senhor sabe! Ainda me lembro de todas elas... Sabe vô, algumas vezes eu até sonhava com elas!
-Bondade sua meu querido... Bom, então vem aqui e me dê um abraço, um beijo e um aperto de mão, pois, como você já sabe, este é meu pagamento antecipado.
-Oh vô! – me desculpe (neste momento o neto abraça o avô calorosamente, em seguida beija-lhe a face enrugada e finaliza com um afável aperto de mão)!
-Muito bem, já fui devidamente pago (fala o avô sorrindo), agora vou narrar a estória de um homem de valor que jamais se deixou abalar pelo peso da vida (deu um longo suspiro, mirou o horizonte com um olhar perdido e começou a narrar).
-Certo dia, como lhe era habitual no dia do recebimento da aposentaria, João, esse era o nome desse homem valoroso, pedira à irmã mais velha, cujo nome era Maria, para acompanhá-lo até a agência bancária, que ficava bem distante da periferia onde eles moravam (respirou um pouco e continuou). No meio do caminho, Maria começou a se aborrecer com o que via:
-Ah João, que coisa triste! Várias crianças mendigando na rua!
João ao escutar o lamento de Maria, procurou confortá-la, mas não conseguiu, pois o que ela presenciou a seguir, a deixou furiosa.
-O que aconteceu vô?
-Uma coisa lamentável: do outro lado da rua havia um homem mal encarado recolhendo os trocados que os meninos recebiam como esmolas dos transeuntes!
-E o que ela fez? – E o João, o que fez?
-Calma ai que já conto (fez uma pausa, olhou nos olhos atentos do neto e continuou). – Maria começou a xingar aquele homem, mas com a voz bem baixa, de forma que somente João pode escutar.
- Maria, não se preocupe com isso minha irmã! Lembre-se do ensinamento do nosso Senhor: “benditos são os que têm sede de justiça...” (apertou a mão da irmã e prosseguiu) - Minha querida irmã, eu tenho certeza que essa esmola que você viu este homem tomando das crianças, será o preço que a vida vai cobrar dele. Quanto às crianças, bem, acreditemos na justiça divina!
-Ah, eu sei meu irmão, mas é que eu não consigo ver estas coisas e me conformar, entende?
-Entendo! Entendo sim minha irmã! Mas vamos! - vamos seguir nosso caminho, tudo bem?
-Nossa vô, esse João me parece ser um cara sereno, enquanto que a Maria parece ser um tanto quanto temperamental, não é verdade?
-Sim, você observou bem, é isso mesmo (o avô gostava quanto o neto interagia com ele: era sinal que já estava enxergando a estória), pois, mais à frente, outro fato fez Maria perder as estribeiras, havia vários rapazes, alguns até mais novo que você, fumando maconha!
-Tá vendo? Eu não aguento isso meu irmão, esses moleques não sabem nada da vida ainda, no entanto, já estão se envenenando com essa droga maldita!
-É irmã, eu estou sentindo o cheiro desta erva maldiçoada. Concordo com você querida, eles não sabem nada da vida, muitos até perderão a vida antes de saber alguma coisa, mas Deus é misericordioso e mostrará àqueles que optarem pelo caminho reto, que sim, é possível viver na dura vida das periferias, sem a ilusão das drogas.
-É irmão, você sempre tem uma palavra de conforto para mim, obrigado! – Vamos, pois já estamos bem próximos da agência bancaria.
-Vô, uma coisa está me intrigando nesta estória, o João não podia andar sozinho devido a alguma deficiência nas pernas, por isso que ele era sempre acompanhado pela irmã?
- Não meu querido (respondeu o avô, sorrindo), João andava para todos os lados, embora com um pouco de dificuldades, mas andava. O problema dele era a cegueira, sim, ele nasceu cego!
-Cego vô?
-Sim, nunca viu nem o próprio rosto! No entanto enxergava como ninguém a alma humana.
-É vô, deu para perceber isso mesmo, ele procurava “ver” a vida sempre pelo lado positivo, já a irmã...
-É meu neto, a Maria falava que se sentia cega quando o irmão estava do lado dela, porque ele “enxergava” nas situações cotidianas, alguns detalhes que ela não conseguia visualizar. – Bem, meu querido neto, por hoje é isso, essa estória acaba por aqui, mas de onde ela veio, tem mais viu!
-Obrigado vô! Outro dia volto aqui para escutar outra hein!
FIM – Isaías Gresmés 13/02/2010 – *Conto inspirado no soneto “NADA VEJO”, de Josafá Maia
Nada vejo
A minha volta nada vejo de tristeza,
Não vejo a boca a mendigar migalhas,
Não vejo a podridão do vil canalha,
Não vejo d’alma negra a impureza.
Não vejo a maldade que se espalha,
Não vejo as crianças indefesas,
Não vejo do bandido a pobre presa,
Não vejo o pobre a carregar cangalha.
Não vejo a densa nuvem de fumaça
Que sobe da maconha em plena praça.
Não vejo nada, mas tampouco nego.
Pois Deus, em sua bondade infinita
Livrou-me dessa infame vista aflita,
Não vejo esse mundo. Eu nasci cego!
Josafá Maia da Costa
Pior cego é aquele que não pode ver e, abençoados os que enxergam além de ver.
ResponderExcluirVirei em um momento mais oportuno fazer o comentário que merece.
bjs
Divino, como sempre
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOi Isaías...
ResponderExcluirEu já havia lido e, me emocionado, com esse poema do Josafá!
E o seu conto, não foi diferente, também me emocionou ouvir a história que o avô (cego) conta (de si próprio) para o netinho...
Daí, tira-se uma grande verdade:
Nem todos os olhos que veem, enxergam; e, nem todos os olhos cegos estão em total escuridão!
Gostei demais, meu garoto!
Muito embora o meu comentário possa ser simplório, ok?
Um beijo em você.
Agradeço de coração Kelly, pelo seu comentário. Muito obrigado. Suas observações só me fortalecem.
ResponderExcluirSôni@, adorei o seu comentário. Você fez uma observação (do avô ser cego) que eu não havia imaginado. mas é perfeitamente possível e a leitura pode sim levar a esta conclusão. Fiquei emocionado ao "enxergar" a cena do avô cego narrando a estória de um outro cego. Obrigado pelo carinho e pela gentileza no seu comentário.
ResponderExcluirA visão deste conto percebe o que os olhos físicos não concebe...
ResponderExcluirMenino , não havia lido este conto!
Beleza de postado!
COMENTÁRIO SOBRE O TEXTO “UM OUTRO OLHAR”, DE ISAIAS GRESMÉS
ResponderExcluirO texto baseado no poema de Josafá Maia da Costa foi muito bem escrito. Conseguiu fazer com que o leitor visualizasse as cenas descritas.
Usando nomes e temas cotidianos o autor transportou ao texto suas próprias indignações ante a realidade tão cruel e triste que vivemos no tempo contemporâneo. A exploração de menores e o uso de drogas. Temas que poderiam ser amplamente explorados além de expandidos, caso fosse esse o interesse do autor.
As figuras antagônicas usadas ajudam a dar movimento ao texto e, aliada a elas, está a própria movimentação dos personagens ao se dirigirem, a pé, ao seu destino – o banco-
Enquanto percorrem as ruas, desfrutando da companhia fraterna um do outro, vão tecendo observações e comentários a respeito do que ocorre ao seu redor. Maria faz de forma revoltada e indignada, ao passo que João é mais tranqüilo e ajuda a irmã a se acalmar e a se conformar com as injustiças do mundo.
As duas cenas descritas pelos personagens, a exploração de menores e o uso de drogas, carregam em si tantas entrelinhas que seria possível criar tantos outros contos baseados nesse.
A exploração de um adulto ao tirar dinheiro das crianças que mendigavam leva o leitor a questionar a realidade dessas crianças. Teriam pais? Se os têm, onde estão? Qual o tipo de gente? Até que ponto essas crianças são exploradas? Onde está o DIREITO vigente no ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE? Tem um ditado que diz: “Falar, até papagaio fala!”. Elas precisam de ajuda agora para não tornarem-se os jovens drogados da situação seguinte vista pelos personagens ou tornarem-se coisa pior...
Quanto à cena dos jovens drogados, o questionamento também é extenso. O que levou esses jovens ao uso de drogas? Sabe-se que não só jovens de baixa renda drogam-se, sendo assim, pergunta-se: como é a família deles? No caso de ser estruturada, qual parte deu errado? Qual foi o gatilho que os levou a se desviarem do caminho do bem? Assim como na situação anterior, a gama de especulação é tamanha que geraria, aqui também, outros contos
Essas figuras dão o pano de fundo em que decorre a história. O avô e o neto (idoso e jovem); a irmã e o irmão (mulher/homem), a serenidade do personagem João em contrapartida à revolta de Maria, a religiosidade de João e a mudez de Maria a esse respeito.
Outro ponto que chama a atenção é a rara disposição de um jovem e ainda criança, escutar as histórias /ensinamentos de uma pessoa idosa.
O menino realmente gosta de estar com o avô, de ouvir suas historias, fica ansioso com o dia de vista e o faz com grande carinho
O desfecho da história é excelente. A cegueira física de João não o impediu de ver o mundo pelos olhos da alma. Não é uma pessoa revoltada com sua deficiência, crê em Deus e crê em Seu julgamento.
As lições de moral, religião e respeito demonstradas nesse conto deveriam servir de “puxão de orelhas” a todos nós que deixamos cenas como essas fazerem parte da realidade como algo normal e banal. Algo ser comum não quer dizer que seja normal e certo. NÃO É CERTO NEM NORMAL A EXPLORAÇÃO FISICA E MORAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES. NÃO É CERTO NEM NORMAL O USO E TRÁFICO DE DROGAS EM PORTAS DE ESCOLAS.
Devemos desesperadamente gritar contra as injustiças, o mal não deve vencer em hipótese alguma
Obrigada Isaias por mais um excelente trabalho que tive a oportunidade de ler
kelly